sexta-feira, 8 de maio de 2020

A TERRA DOS VENTOS UIVANTES

 CARECA E TREMOÇO

Era umas três horas da tarde; o banco estava cheio.
Às segundas-feiras acontece isso, ainda mais quando é começo de mês.
A gente às vezes vai ao caixa, substituir um colega, e fica com as orelhas quentes com o movimento.
É pagamento de carnets, é desconto de cheques, taxas e outros bichos. Não é brincadeira. É da gente ficar tonta.
Para refrescar as ideias resolvi dar um pulo no bar do Jorge Hakim, tomar um refrigerante. Bem que eu merecia um descanso.
Botei meu bumbum numa cadeira giratória, achei que ele precisava. Dei um suspiro e passei a mandar goela abaixo o líquido doce.
De repente, sentam-se a par de mim dois sujeitos.
Eram jovens. Um deles tinha cara de amendoim torrado, não sei se tinha tomado muito sol ou lavou-a na salmoura. O certo é que sua feição estava tostada.
O outro, apesar de moço, estava quase que totalmente careca.
E assim que ele era interlocutado. Eu de esguelha. Urubuservando. Ouvido atento, todo ouvido, como diz a turma da novela.
O assunto não poderia de ser outro. A política daqui.    
Saboreando um pastel ( o pastel  dali é uma delícia!), começa o Careca a tagarelar:
- Tremoço - (Nunca ouvi esse nome), dizia o Careca - Você viu o que o Marcão e o Miguel Terra fizeram com o Gijo Válio?
Uma espécie de pergunta que deixou meio assustado o Tremoço.
Eu, de soslaio - não era só eu; o dono da baiuca, um barbudinho também, não deixava de, sorrateiramente, ouvir a conversa.
- Pois é, prosseguia o Careca. Os dois começaram uma briga dentro do partido, o PT, e deixaram o Gijo Válio numa situação bastante desagradável.
Aí entra na curiosa conversa o Tremoço.
- Eu ouvi dizer que a mulher do Miguel era a vice-prefeita, junto com o Gijo; não é mais porque renunciou.
- Coisa feia, observou o Careca.
- Agora o que fico bobo é em saber como o Gijo foi entrar nessa, continuou o Tremoço. Um sujeito como ele, que todo mundo sabe que é honesto, sério, dado a defensor de ideias e ideologias e causas, de repente, ficar numa situação como essa. Coitado!
- A política tem dessas coisas, começa o Careca, de novo.Eu ouvi o Gijo dizer um dia desses que a vontade principal dele era participar da luta eleitoral, era dar uma opção ao povo, para não haver votos em branco e nulos. Ele é um cara muito democrático.
- Também o que esperar do Marcão e do Miguel? Um, segundo dizem, está fazendo o jogo do Zá, o outro do Zé. Tudo interesse, Canalhice, retrucou o Tremoço.
A conversa dava o prosseguimento, mas eu precisava retornar ao Banco. 
Bem que eu fiquei querendo ouvir mais.
Mas não deu...
Em 18 de setembro de 1988. 

SEU INFISULINO

Dem. Dem.
O Big-Ben da nossa matriz batia quatro horas da tarde.
O ensaio para a aurora começava.
Eu ainda dentro da repartição, dava os toques finais na empreitada do dia.
Olhava as últimas caras dos depositantes e dos saqueadores - opa! errei, sacadores, o certo.
Já era hora de me mandar.
Antes, porém, de ir para o Bar do Hakim tomar uns goles e mandar pro bucho uns pastéis, resolvi dar um pulo no Ponto de Taxi.
Lá estavam vários dos motoristas componentes da equipe que serve passageiros. Gente folgada.
Dando cartas estava o "Seu" Infisulino.
Começavam a negra de uma trucada, os quatro que estavam sentados. Risos, gargalhadas se faziam a cada segundo, barulhando o local.
Eu tenho procurado aprender o jogo de truco; não consigo, embasbaco-me todo. É engraçado esse passatempo devido aos palavrões que são soltados a todo instante, reproduzindo sobressaltos e mais gritos de alegria.
Acabado a negra, tentaram o negrão, não deu; chega um freguês e toma assento no carro de um dos contendores.
Eu de sapo ali.
De repente, encosta na roda um cara de óculos, parecendo um doutor, meio careca, vermelho, parecendo um pimentão maduro.
Não deu outra.
O "Seu" Infisulino, o mais maduro da equipe começou a tagarelar e sua corriqueirice foi logo em direção ao recém-chegado.
- "Seu" Martelo - só o que faltava; que nome, hein? - que atitude nós vamos tomar nas próximas eleições? Você sabe que eu sempre fui seu companheiro. Não é porque você abandonou a luta que vou deixar de pedir o seu palpite.
O velho Infisulino não tinha medo nem de morder a língua, nem de blasfemar, estava revoltado com a situação.
E dizia com fervor:
- Essa cambada  de políticos me dá enjôo. É muita ganância.
O "Seu" Martelo quieto, na escuta:
- Eu li uma notícia  na "A Hora" que o ano que vem os vereadores vão ganhar mais de duzentos mil cruzados por mês. Cruz credo! Isso é demais!- continuou o Infisulino.
O "Seu" Martelo sai do silêncio e desembucha:
- Eles estão seguindo o exemplo dos deputados, dos políticos lá de cima. Tudo interesse, meu cara. Agora o que devemos pensar ´pe qie o nosso dinheiro não vale mais nada, e, se a coisa não mudar, quando chegar no fim do ano, eles estarão ganhamdo um milhão. É penoso a gente ser político numa situação dessa. A bandalheira começa já na campanha. O homem fica sem-vergonha demais. Você vê a luta dos candidatos a Prefeito? Será que é por patriotismo, por bairrismo, amor ao local em que vivem? Que nada! Tudo por interesse, pois o ordenado é pequeno. A mamata ali é grande. Veja quantos entram ali pobres e saem ricos. Se arranjam logo.
Êpa! A conversa estava engrossando, deixa me mandar.
Vou sossegar a cuca, senão acabarei não votando em ninguém.
    
20 setembro 1988. 

VIRADO COM TORRESMOS 

"Mea culpa, mea culpa".
Assim dizem os que se arrependem de algum pecado.
Pois é, aconteceu comigo.
Tive que bater a mão no peito e pronunciar várias vezes essas palavras.
Vou contar porque.
Estava eu fechando o caixa do banco e vejo na fila o Zé Rato.
Não deixei de ficar um tanto tonto com a sua presença.
É que veio à minha cuca a lembrança da sua braveza manifestada por ocasião do comício do Zá na praça.
Não é que ele tinha razão?
Quem não teve razão fui eu quando disse que ele não tinha feito nada na Câmara.
Por causa disso, ele trouxe um monte de documentos no comício, exibindo-os com as musculaturas faciais em êxtase, os braços em evoluções rígidas, como a querer alcançar alguém.
Estava furioso.
Imaginem!
Comigo que lhe fiz críticas.
Não é mole a gente encarar alguém que se julgou ser ofendido pela gente.
Os olhos ficam à deriva, não sabendo fixar-se na pessoa.
É o constrangimento.
Principalmente quando essa pessoa é nossa amiga, como é o meu caso.
O Rato é meu amigo, e por ser meu amigo e sem saber que eu sou o tal, vejam o que aconteceu: - chegou  a vez dele ser atendido.
Como um ser leal, virtuoso, sem malícia alguma, foi logo me cumprimentando com aquele sorriso franco que costuma ter.
Eu completamente desajeitado.
O que fazer?!
Tinha que bancar o sincero. Aliás, eu sou sincero; não fui com ele.
De tão desajeitado que o meu cumprimento foi até de mãos, o que nenhum caixa de banco faz, pois não é recomendável sob propósito algum.
Depois de ligeiro bate-papo ele me convidou para comer um virado de torresmos em sua casa.
Como eu poderia furtar-me a tão feliz convite?
O meu pensamento foi logo estudando uma forma de demonstrar que eu jamais tive a intenção de prejudicá-lo com crítica escrita em "A Hora", em tempos atrás.
Foi uma brincadeira de mau gosto, devo confessar.
Puxa vida!
Eu nunca tinha ido à sua casa.
Ele e sua senhora são gente modesta; de uma  simplicidade bem notável.
Uma caipirinha preparada por ele já me deixou mais à vontade. Mais outra e mais outra e eu já era um parafuso sendo tirado da porca. Estava livre!
Que virado! Da gente encher a pança!
Agora o que mais me satisfez foi notar que ele não sabia que o tal sou eu.
Fui embora meio cambaleante; durante o trajeto confabulei e ratifiquei: vou votar no Zé Rato pra vereador. Ele merece meu voto pois é gente boa, leal e quer bem nossa terrinha.
Mea culpa!

Outubro de 1988.
 
 



  
DE VOLTA AOS VENTOS UIVANTES


Cheguei.
Cá estou de novo, depois de um pequeno longo tempo em outras paradas.
O banco em que trabalho determinou que eu fosse fazer uns serviços noutra cidade, noutra agência.
Aqui estando, quero, primeiramente, congratular-me com "A Hora" pela passagem de dois anos de sua existência tão bem registrada na edição do dia 13 de agosto de 1989, data do seu aniversário.
O que não gostei nada foi a recepção que me reservou o tal vento do mar - do mal, melhor dizendo.
Vindo de uma terra quente sem o tal, estranhei, e muito, sua ação e o frio que produz.
Como me sentia, quase que constantemente com o pelo arrepiado ao sair de casa, o jeito então era procurar um amigo para tomar umas e outras, a fim de esquentar, óbvio.
Não podia dar outra, pois o amigo, coincidentemente, surge.
E quem era?
O Pedro Pichorra.
Esbarrando comigo, foi logo abrindo seus braços para um aperto profundo, numa demonstração da mais nobre amizade.
Depois da sua corriqueira curiosidade  a meu respeito, convidou-me para tomar uns tragos lá na Rodoviária.
Tudo bem.
Por que não?
Meu Deus como ventava no vão que dá estada aos passageiros à espera da condução!
Reclamei ao deus-dará por aquele estado de coisa que parecia um frigorífico de linguiças, mortadelas e costelas de boi.
Ouvindo minhas reclamações, o Pedro Pichorra abriu a boca e começou a tagarelar, uma singularidade sua que às vezes demonstra razão.
- Olha - disse ele -, isto aqui já era para estar fechado, pelo menos o lado sul onde desemboca este vento pesteante. Entra prefeito e sai prefeito e isto continua aberto, parecendo que eles têm uma rixa com o Nestor França  seus fregueses. Acho até que há vontade de que eles tenham uma pneumonia. 
O Pichorra, depois que manda pros buchos umas e outras, ninguém mais segura sua língua.
O pior é que ele não mede as consequências do que diz.
Foi o que aconteceu nessas alturas.
- Você que vive lambendo o prefeito e os vereadores, que sei que são da sua laia, gente grã-fina, peça pra eles fechar isto aqui antes que o Nestor bata com as dez.
E terminou com um largo sorriso.
Eu já não estava aguentando mais de frio; arrepiado até às costelas, comecei a abusar da danada, e nem acreditei quando um táxi fez ponto: pedi ao seu proprietário que me levasse para casa.
Estava de cara cheia.
O Pichorra ficou, mandando outras com o Ferreirinha e outros, acostumados com o tal vento do mar e o frio que ele produz como um castigo àquela gente que frequenta a estação rodoviária.
Dá para pensar na razão do Pichorra.
Vou falar com o prefeito para ele estudar a possibilidade de concretizar o fechamento do lado sul da Rodoviária.
Faz sentido.
É uma necessidade.
É uma conjuntura viável bastando boa vontade.

Agosto de 1989. 

A TERRA DOS VENTOS UIVANTES

  CARECA E TREMOÇO Era umas três horas da tarde; o banco estava cheio. Às segundas-feiras acontece isso, ainda mais quando é começo de ...